Afirma-se
que é preciso cortar serviços públicos agora, para (mais tarde…) reduzir
os juros. Veja o que está por trás deste argumento
O ministro
da Fazenda, Guido Mantega, saiu de férias ontem (3/1), por quinze dias,
segundo informou a repórter Luciana Otoni, no Valor. A
motivação do jornal, cujo público inclui executivos financeiros, não é, claro,
o merecido descanso do ministro. A viagem de Mantega – substituído
interinamento pelo secretário-executivo do ministério, Nelson Barbosa – indica
que deverá ficar para fevereiro a decisão do governo sobre um possível corte no
Orçamento da União para 2012. Ao contrário do que fez o Estadão, no
domingo (veja nosso comentário), o Valor reconhece
que a decisão não está tomada. Portanto, talvez haja tempo
para promover o que a oligarquia financeira [para conhecê-la, leia Patrick Viveret] mais teme: um debate sem
mistificações sobre o tema.
Nos últimos
anos, cresceu muito, entre a sociedade, o desconforto em relação ao pagamento
dos juros da dívida pública – por meio dos quais o Estado transfere maciçamente
recursos , do conjunto da população para uma ínfima minoria de grandes
aplicadores endinheirados. O eventual corte no Orçamento visa, como sempre,
abrir espaço para manter ou ampliar esta transferência. Mas, com o tempo,
tornou-se impossível defender o movimento a seco. Por isso, surgiu um argumento
curioso: ao reduzir as despesas com serviços públicos e direitos sociais agora,
o Estado estaria abrindo espaço (este é o termo-chave) para
reduzir o pagamento de juros… mais tarde.
A própria
lógica do raciocínio é exótica. Todos compreendemos que, para realizar um novo
gasto é necessário, às vezes, cortar outro, já existente ou programado
(“adio uma viagem de férias para arrumar a casa”). Mas por que a redução de
uma despesa perdulária dependeria da eliminação anterior de outra? Seria como
se um jogador compulsivo dissesse: “vou cortar as despesas de educação da
família agora para poder, daqui a seis meses, deixar o cassino”. Ou, no caso de
um glutão voraz: “Em 2012, não como mais frutas. Assim, abro
espaço para esquecer a mesa de doces… em 2013”.
Na prática,
a incongruência torna-se ainda mais clara. Em fevereiro de 2011, poucas semanas
depois de tomar posse, a presidente Dilma decretou um corte equivalente a 50
bilhões de reais, nos serviços públicos. Isso não evitou que, ao longo do ano,
o pagamento de juros batesse todos os recordes anteriores: R$ 216,1 bilhões até
novembro. Em onze meses, a sociedade transferiu, para a oligarquia
financeira, doze vezes mais recursos que os destinados à
Bolsa-Família, ou sete vezes o valor a ser investido na Copa
do Mundo, ao longo de quatro anos.
Se valores
tão vultosos estão envolvidos, e vivemos numa democracia, seria natural que
governo, Congresso e em especial a mídia estimulassem um amplo debate sobre o
tema. Estranhamente, os mesmos jornais que fazem imenso alarde em torno de
somas irrisórias (alguém se esqueceu do “escândalo da tapioca”?), emudecem por
completo diante de rios de dinheiro. Haverá aí algo de cumplicidade? Será a
isso que Ignacio Ramonet se refere, quando diz temer
as democraduras – alianças entre os poderes econômico,
midiático e eventualmente militar?
Da velha
mídia, seria difícil esperar outro comportamento. Mas, ao menos em palavras, a
presidente Dilma tem condenado o caminho desastroso seguido
por governos que, diante da crise, atacam direitos e serviços. Oxalá o ministro
Mantega, revigorado pelas férias e livre das pressões quotidianas, encontre
inspiração para pensar a respeito. E não seria mau se os movimentos sociais,
cujas reivindicações têm tanto a ver com um novo padrão de serviços públicos,
entrassem no debate.